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  • Foto do escritorRafaela Maciel

Até onde o trote é saudável? Sobre os estudantes de medicina e o assédio

No último domingo (17) viralizou um vídeo em que estudantes de medicina protagonizam atos obscenos na frente do time de vôlei feminino.



O ato em questão aconteceu em abril deste mesmo ano. No entanto, o vídeo viralizou apenas no domingo (17), ganhando repercussão nacional, sendo repudiado pelo Ministério das Mulheres. A Unisa, faculdade onde se passou o ocorrido, foi notificada pelo MEC e algumas expulsões já estão acontecendo. A polícia está trabalhando para encontrar os responsáveis.

 

Mas o que exatamente aconteceu?

 

Alunos do curso de medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa) estavam passando pelo trote no mês de abril. A questão com os trotes de faculdade já é bem polêmica, sendo que, em fevereiro do mesmo ano, uma mãe encontrou seu filho desacordado e coberto de tinta em um posto de combustível, e o rapaz precisou ser socorrido ao hospital.

 

A universidade em si não aprova a prática do trote. Contudo, o ato do vídeo aconteceu nas dependências da instituição, sem que ninguém freasse a prática. Durante o campeonato de vôlei, os alunos homens do curso de medicina invadiram a quadra, alguns nus, e promoveram a masturbação em público. O vídeo está sendo apelidado de "putanhaço".

 

E como isso afetou as mulheres?

 

Trata-se de um ato claramente misógino. Era um jogo de vôlei feminino, equipes formadas por mulheres que estavam na quadra jogando um campeonato universitário importante e foram expostas a atos obscenos. O esporte em si já é visto como algo masculino, então, quando a mulher finalmente ocupa seu espaço, um grupo de homens invade o jogo e comente assédio em público, sem medo da repercussão ou das consequências, simplesmente porque podem, o machismo fica escancarado.

 

O que mais agrava a situação é de se tratarem de estudantes de medicina, profissionais que lidam diariamente com pessoas, inclusive mulheres. Se os futuros médicos não possuem o pudor de se comportar civilizadamente em um evento público, diante de centenas de celulares, como se comportam com uma mulher desacompanhada em uma consulta médica de portas fechadas?

 

Podem, esses mesmos homens, "futuros médicos", exercerem a profissão? Podem, eles, se tornarem obstetras, ginecologistas, clínicos, cirurgiões, anestesistas e garantirem que não vão assediar ou abusar de suas pacientes? O que garante que homens com a capacidade de se expor em público, invadir um jogo feminino, promover um ato de masturbação pública, assediar mulheres em locais públicos, não vão fazer o mesmo, ou pior, em um hospital ou em uma clínica?

 

Já temos casos de assédios e abusos médicos. Em 2022, Giovanni Quintella estuprou uma mulher durante o parto. A vítima foi anestesiada por ele e, durante o processo, ele estuprou a mulher, inserindo seu pênis na boca da vítima enquanto ela estava desacordada. Além dela, ele foi indiciado por mais 23 casos de estupro. Um profissional formado, que jurou proteger seus pacientes, estuprou 24 mulheres (de que se tem conhecimento) em seu momento de maior fragilidade, durante o parto, enquanto estavam desacordadas.

 

Esse tipo de comportamento não pode ser justificado, apagado ou esquecido. Um grupo de homens correndo, nus, se masturbando na frente das mulheres, em uma universidade, não podem ter seus atos normalizados como "algo de jovens". Ainda mais quando esses mesmos homens estão estudando para se tornarem médicos, profissão — e missão — que envolve o contato humano direto. Casos como o de Giovanni Quintella não podem se repetir. Não foi um ato engraçado, foi um crime.

 

Nas redes sociais, diversas mulheres comentam sobre o assunto e dividem suas próprias experiência com assédio na faculdade, Elisa Brietzke, internauta do X (antigo Twitter), conta um pouco sobre sua experiência: "Uma mulher na faculdade de medicina: 1) quando entrei na faculdade a primeira semana era do trote. Fui no primeiro dia, vi o nível de abuso (moral, sexual, financeiro e físico) e faltei o resto dos dias. Muitos colegas me jogaram para o ostracismo, afinal como eu podia não estar levando aquele horror como brincadeira?"

 

Ela conta que, depois, aconteceram as festas universitárias, em que o consentimento não era comum. "Uma vez achamos uma menina desacordada de calças arriadas na escada que dava acesso aos andares superiores da faculdade".

 

Elisa comenta que o ambiente universitário é extremamente machista, sendo que até mesmo o corpo docente é opressor. Ela e suas colegas escutavam diariamente piadinhas sexistas como "muita mulher trabalhando junto não dá" ou "opera que nem homenzinho". Mas o pior foram atos de assédio vindo dos próprios professores, como um caso em que ela precisou ameaçar gritar para que um professor saísse da frente da porta do quarto do hotel em que ela estava hospedada.

 

O ambiente machista e opressor das universidades é refletido em momentos como o do vídeo gravado em abril. Além disso, o hino da atlética de medicina da Unisa faz apologia ao estupro, o que torna tudo mais alarmante, pois normaliza o abuso em um curso em que se deve proteger pessoas.

 

HINO DA ATLÉTICA DE MEDICINA DA UNISA

 

"Xá! Vasca!

Xá! Vasca!

Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!

Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!

O quê? Arre-ga-nhar!

Na rima do pudendo [termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina]

Eu entrei mordendo!

É a Med Santo Amaro que está te fodendo!

Medicina! Santo Amaro! Ôoo!"

 

As frases claramente indicam apologia ao corpo da mulher e ao estupro. "Enfia o dedo nela que vai arreganhar", "Eu entrei mordendo", "É a med Santo Amaro que está te fodendo". É o puro suco da cultura do estupro, e propagado por alunos de medicina que vão ter o poder total sobre o corpo de uma mulher, que vai estar indefesa, acreditando na índole médica, e que índole seria essa, com um hino tão destrutivo desde o tempo de estudos?

 

A Unisa precisa ser responsabilizada, pelo "putanhaço" e por permitir uma aberração como a atlética de medicina existir no ambiente estudantil, compor um hino sobre estupro e realizar trotes violentos com calouros. Existem algumas profissões em que não se pode ter erros, não se pode ter um profissional ruim ou com caráter questionável, e a medicina com certeza é uma delas.

 

Porque eles fizeram isso?

 

A cartilha do crime é a resposta. Segundo alguns relatos feitos de estudantes para o portal G1, os calouros do curso de medicina são obrigados pelo veteranos a seguirem uma cartilha, que existe há mais de dez anos. Todos os calouros precisam se submeter a algumas situações, mas quem participa da atlética de medicina precisa passar pelo trote.

 

O trote não é aconselhado pela faculdade, nem mesmo permitido. No entanto, a Unisa fez vista grossa para todos os acontecimentos dentro do campus referente aos trotes, se pronunciando e agindo apenas agora, depois que o vídeo se tornou público. É bem difícil de acreditar que, durante 10 anos, a faculdade não teve nenhum conhecimento sobre os trotes ou sobre a cartilha.

 

Os alunos que desistem de participar sofrem todos os tipos de bullying, e os que decidem ficar, na maioria das vezes aceitam os trotes por pressões psicológicas. Entre os relatos, alguns destacam que são chantageados, com os alunos mais velhos da atlética afirmando que os calouros não vão conseguir empregos na área, pois não terão indicações boas e nem vão participar de esportes, pois apenas quem passou pelo trote da atlética pode.

 

Eles rebatizam os alunos, dando nomes obscenos e ofensivos, obrigam os calouros a fazerem favores, limparem seus quartos, fazerem seu dever e cometerem atos ridículos e até criminosos, como andarem pelados ou o triste caso do "putanhaço". Os alunos relatam que o trote dura 6 meses, até o final do semestre, mas os castigos por terem "desafiado" um veterano ou não terem feito algo que foi mandado pode durar a graduação toda.

 

Muitas pessoas acabam desistindo do curso por conta de todo o bullying.

 

Então, quem deveria ser responsabilizado?

 

Todos que participaram, foram omissos e quem criou esse trote também. Isso vai incluir desde os calouros que assediaram as alunas, invadindo o jogo e se masturbando coletivamente na frente de todos (todos são adultos, conhecem a lei e sabem que assédio é crime), assim como quem criou esse trote, quem mandou os alunos novos realizarem. Os professores que compactuam e, principalmente, a Unisa, que não foi capaz de identificar os problemas dessa atlética e permitiu que tudo chegasse a esse ponto:

 

- Uma atlética de medicina com hino sobre estupro;

- Uma atlética que há dez anos aterroriza calouros e usa de bullying;

- 5 meses desde o episódio e a faculdade foi omissa, se manifestando apenas agora, e somente porque o vídeo viralizou e foi notificada pelo MEC;

 

Nesse caso, as únicas vítimas foram as pessoas, principalmente as mulheres, que foram novamente assediadas e invalidadas durante seu campeonato com o "punhetaço". Os demais, todos têm culpa. Os calouros, que invadiram a quadra e, mesmo sendo instruídos, conhecedores da lei, optaram por assediar as mulheres naquele momento.

 

Os veteranos; que criaram esse trote criminoso, com a desculpa de ser uma "brincadeira universitária", sendo também eles conhecedores da lei e sabendo que se tratava de assédio. Além de toda a pressão psicológica que eles estão fazendo nos novos alunos. O ambiente estudantil tem que ser seguro e acessível para todos.

 

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