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  • Foto do escritorHellica Miranda

Caso João de Deus, os quase 110 anos de pena e o esquecimento

Processo que condenou suposto médium é referente a crimes de 2015 e 2016 contra 5 vítimas. Crimes parecem ter caído no esquecimento.



O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

(TJGO) informou, em julho do ano passado, que o suposto médium João de Deus foi condenado a mais 48 anos e 6 meses de prisão por crimes sexuais. O processo é referente a crimes cometidos entre os anos de 2015 e 2016 contra cinco vítimas. As vítimas serão indenizadas em R$ 60 mil.


João de Deus continua em prisão domiciliar, determinada pelo tribunal em substituição à prisão preventiva decretada pela comarca de Abadiânia. Ele foi condenado por violação sexual mediante fraude, estupro de vulnerável e posse ilegal e irregular de armas de fogo.


Em dezembro de 2022, João de Deus havia sido condenado — até então, pela última vez — por crimes sexuais contra treze diferentes vítimas, em três processos distintos. No caso, sua pena somou 109 anos e 11 meses de prisão.


Outros seis processos contra ele ainda aguardam julgamento.



História


Mediunidade e cura controversa


"Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária. Para quem não acredita, nenhuma palavra é possível"

— Citação de Dom Inácio de Loyola, considerado o patrono da Casa (que recebeu seu nome) onde João de Deus atendia, exposta junto a um busto do santo no local.


O suposto médium atuava desde 1976 na Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, Goiás, e chegou, inclusive, a "atender" personalidades reconhecidas como o atual presidente, Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff, Xuxa Meneghel e os políticos internacionais Bill Clinton e Hugo Chávez. Além disso, João de Deus foi apresentado por Oprah Winfrey em seus programas, e promoveu excursões internacionais por países como Alemanha, Austrália, Áustria, Estados Unidos, Grécia, Nova Zelândia, Peru e Suíça.


De acordo com a biografia estadunidense "John of God: The Brazilian Healer Who's Touched the Lives of Millions" ("João de Deus: O Curandeiro Brasileiro que Tocou a Vida de Milhões", em tradução livre para o português), até o ano de 2007, o suposto médium já havia atendido mais de 8 milhões de pessoas.


Conhecidos por desenganar e desmascarar alegações de sobrenaturalidade e pseudociência, o mágico John Randi e o investigador paranormal Joe Nickel alegaram publicamente que as supostas cirurgias espirituais de João de Deus não eram nada além de truques de ilusionismo, e que os efeitos relatados pelos "pacientes" não passariam de efeito placebo (um tratamento falso que não causaria nenhum efeito, se não associado a fatores psicológicos, geralmente à crença extrema).


Desde o início de suas atividades como médium curandeiro, João Teixeira de Faria conhecido popularmente como "João de Deus", já era denunciado por exercício ilegal da medicina, uma vez que várias de suas cirurgias espirituais envolviam cortes — como mostrado no primeiro episódio da série documental 'João de Deus - Cura e Crime', da Netflix, usando facas de cozinha, tesouras e bisturis — e nem sequer tinha alvará sanitário. No entanto, como declarado em 2018 pelo responsável pelo departamento de Vigilância Sanitária de Pirineus (GO), Luiz Eduardo Mendes, que, à época, respondia pela fiscalização em Abadiânia, "Atividades espirituais não se inserem no escopo da Vigilância Sanitária. Os fiscais não têm amparo legal para esse tipo de fiscalização".


Mendes explicou que a Vigilância só poderia atuar em uma situação de denúncia de "medicina clandestina" e que tivesse o respaldo de uma força-tarefa formada por polícia, Ministério Público e Conselho Regional de Medicina, e afirmou que "ninguém nunca quis mexer com essa questão".


Ainda em 2018, o Conselho Federal de Medicina declarou nunca ter recebido nenhuma denúncia sobre o assunto. E, embora já tenha sido alvo no passado de denúncias por exercício ilegal da medicina, no Tribunal de Justiça de Go­iás não havia nenhum processo contra João de Deus por esse ou por charlatanismo.


Para cada um de seus "pacientes", João Teixeira de Farias receitava passiflora, um remédio fitoterápico conhecido principalmente por seu efeito sobre casos de ansiedade e estresse. Na já citada série documental 'João de Deus - Cura e Crime', um voluntário da Casa diz que "a pessoa, quando abre [o pote de remédio] a primeira vez, ela mentaliza pra quê ela vai tomar, qual é a finalidade daquele comprimido, daquele medicamento (...) Ela tem que mentalizar pra quê está fazendo, porque na ponta dos dedos está a energia. Você toma o comprimido, aquele comprimido vai estar preparado para aquele tratamento que você pediu". O depoimento reforça todos os apontamentos científicos a respeito do efeito placebo.



Dinheiro, política e manipulação



A popularidade de João de Deus e seus supostos feitos na Casa em Abadiânia, cidade no interior de Goiás, teve notável importância para o crescimento do município: devido à grande circulação de pessoas de fora, foram abertos restaurantes e pousadas, mais taxistas passaram a ser necessários, e o turismo se tornou uma realidade rentável.


Com o tempo, passou a haver, na Casa de Dom Inácio de Loyola, o comércio de diversos suvenires, que iam de garrafas de água "purificada", rosários, imagens de santos e um livro que supostamente relataria os dados "científicos" por trás das cirurgias espirituais de João de Deus, que já haviam, por exemplo, reunido milhares de pessoas em filas em sua passagem pelo Peru, em 1991.


No final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, o principal foco do homem condenado hoje a mais de 100 anos de prisão passou a ser atrair estrangeiros para a cidade. Grupos e mais grupos de estrangeiros eram atraídos pelos depoimentos em suas comunidades — em parte, feitos a pedido do próprio João a seus "guias". O mais famoso deles foi Robert Pellegrino-Estrich, autor do livro "The Miracle Man: The Life Story of João de Deus" ("O Homem Milagroso: A História de Vida de João de Deus", em tradução livre para o português).


A massa estrangeira levou a João não apenas mais seguidores, mas dinheiro e prestígio. Sua fama com o "público internacional" crescia, mas também influenciava sua fama no próprio país.


No ano de 2005, nos Estados Unidos, a rede de televisão ABC exibiu uma reportagem especial sobre o suposto médium, mostrando cinco pessoas atendidas por ele. A reportagem mostrou, ainda, uma jovem paraplégica começando a mover as pernas. Futuramente, no entanto, somente um dos casos havia passado por alguma melhora. Dois dos "pacientes" faleceram em decorrência dos problemas alegadamente tratados nos anos seguintes.


Sete anos depois, a apresentadora e supercelebridade estadunidense Oprah Winfrey esteve na Casa Dom Inácio de Loyola, e testemunhou sobre ter sentido a força do local e quase desmaiado.


João de Deus acompanhado da apresentadora Oprah Winfrey

No ano seguinte, a convite de um canadense e sob inúmeras exigências (como viajar na primeira classe, hospedar-se em um hotel 4 estrelas e embarcar com um contêiner cheio de pílulas), João de Deus chegou em Toronto para uma sessão espiritual massiva, que levou ao Canadá incontáveis garrafinhas da já mencionada água "purificada" com rótulos estampando o rosto do suposto médium, além de contar com uma superestrutura para suportar o evento, que se repetiu quase identicamente em 2016, na cidade de Nova York.


Quando visitados para entrevista por uma equipe do 60 Minutes, em 2014, uma voluntária da Casa, que atuava como tradutora, recusou que João de Deus respondesse à pergunta "Seu espírito gera um grande negócio. Trata-se mais de dinheiro do que milagres?" O suposto médium também não respondeu à pergunta feita sobre assediar "seguidoras". No documentário da Netflix, é mostrada sua irritação com a repetição da pergunta "Já houve algum assédio sexual do senhor?", ao que respondeu: "Da sua mãe!".


Na reportagem, dividida em duas partes, o repórter Michael Usher expôs casos de australianos que vieram ao Brasil para "consulta" com João e voltaram para casa com os mesmos problemas, piorando e até falecendo nos meses seguintes.


Usher também mostrou que cada consulta com João de Deus era gratuita, mas, muitas vezes, ele prescrevia visitas a uma sala com cristais, que custavam 25 dólares por sessão, o que gerava uma receita de aproximadamente 1,8 milhão de dólares por ano.


Além disso, a reportagem apurou que as pílulas de passiflora vendidas no local geravam, diariamente, uma receita de 40 mil dólares.


Na segunda parte da reportagem, Usher expõe um caso ocorrido em 2010, nos Estados Unidos, quando João de Deus chegou a ser investigado pela polícia local depois das alegações de uma mulher de que ele teria levado suas mãos aos próprios genitais e tentado tocá-la contra sua vontade por baixo de sua saia. O caso nunca foi ao tribunal, já que a vítima retirou as acusações.


Usher ainda citou que há valor na esperança e na fé, mas que estas também podem ser usadas pelo "pior tipo de seres humanos", que transforma as pessoas em presas fáceis.


Inúmeras vezes durante os anos, no entanto, o próprio João de Deus apareceu publicamente falando sobre como seria praticamente impossível "enganar" as pessoas por tanto tempo.


Um ex-funcionário da Casa conta, em 'João de Deus - Cura e Crime', que o homem era "um verdadeiro gângster": ninguém mais sequer tocava em seu dinheiro, e ele estava disposto a tudo para ganhá-lo. João de Deus cobrava "mensalidades" das pousadas e dos taxistas de Abadiânia, para que pudessem continuar operando na cidade. Ele também exigia ser informado a respeito de "causadores de problemas", pessoas que questionassem sua atuação na Casa Dom Inácio de Loyola.


"Ele comprava ouro e esmeralda. Eu acho que o negócio de espiritismo não leva ninguém pra frente. O que levou ele pra frente foi as pedras, e os povo rico que acompanhou ele", menciona Zé Telim, amigo de João de Deus, que também já havia declarado previamente que sua fonte de renda era o garimpo: "Sou um aventureiro do garimpo (...) Não estou nessa missão por ganhar dinheiro, não, meus irmãos. É porque eu tenho fé em Deus de que eu vou vencer. É isso que eu quero. E no dia que eu pensar em ganhar dinheiro, eu quero que o divino Pai eterno transforme meu corpo todo em lepra".


Denúncias


Em dezembro de 2018, João de Deus foi denunciado por mais de trezentas mulheres que o procuraram para ajuda espiritual. As queixas vieram à tona no programa Conversa com Bial, em 7 de dezembro. Nos dias seguintes, os jornais O Globo e Jornal Nacional divulgaram mais 2 casos.


A enorme quantidade de denúncias levou os Ministérios Públicos de São Paulo e Goiás a criar uma força-tarefa para apurar os crimes, bem como canais específicos para receber possíveis novas denúncias.


Sabrina Bittencourt, ativista social que ajudou nas denúncias, alegou que uma das vítimas chegou a cometer suicídio, mas que, por acreditar cegamente no suposto médium, sua família jamais acreditou nas denúncias.


Em 12 de dezembro, o Ministério Público de Goiás pediu a prisão preventiva de João de Deus. Ao ser questionado por repórteres, alegou apenas ser inocente. Após ser considerado foragido pela polícia, entregou-se e foi preso.


Em vídeo de 2001 — mostrado no segundo episódio da série documental da Netflix —, João de Deus aparece dizendo: "João de Deus tem todo defeito do mundo. É mulherengo, é cheio de confusão, mas nunca estrupei (sicninguém, nunca pequei". À ocasião, ele se referia a uma denúncia (não realizada à Polícia) de que teria assediado sexualmente uma jovem, ao que complementou: "Então, se eu agarrei essa menina e estrupei, agora vou ter que casar, porque a menina é nova".


Eu não sou santo, não. Sou cheio de defeitos, porque eu sou homem. Tô velho, mas ainda como.

— João de Deus, em 23 de fevereiro de 2001.



Às sombras das primeiras suspeitas, muito antes das denúncias estourarem, João se escondia sob as supostas entidades que recebia, quando questionado sobre o que acontecia enquanto centenas de pessoas estavam sentadas de olhos fechados. "Se alguém fez alguma coisa, foi a entidade", era o que ele alegava, de acordo com o ex-guia da Casa, Michael Bailot, que, não muito tempo depois, deixou a cidade com sua esposa após tentar alertar alguns estrangeiros sobre as atividades criminosas de João de Deus.


Outros ex-funcionários testemunharam ter ouvido histórias de assassinatos, extorsões e ameaças.


Além dos crimes sexuais, João de Deus foi indiciado por falsidade ideológica, corrupção de testemunha, coação e posse ilegal de armas de fogo e munição.


As ligações do dito médium aos crimes, no entanto, são mais antigas. Em 1985, foi acusado de contrabandear minério, e foi preso com autunita, um minério com alto teor de urânio, elemento que pode causar envenenamento e cujo isótopo é radioativo.


João de Deus foi, também nos anos 1980, acusado pelo assassinato de um taxista. Delvanir Cardoso Fonseca foi morto com um tiro nas costas em janeiro de 1980. Uma amiga da vítima alegou que João teria o ameaçado de morte por manter um relacionamento amoroso com Tereza Cordeiro de Faria, então esposa do suposto médium. Ele foi absolvido por falta de provas.


A crueldade dele não tem limites. Ele é capaz de estuprar a filha de um casal que tá sentado do lado de fora, escutando. Com a maior normalidade do mundo. Sem o menor remorso do mundo. Ele rouba muito mais do que a sua fé.

— Andrea Mannelli, administradora. Vítima de João Teixeira de Faria.



Em março de 2020, devido à sua idade e em razão da pandemia de Covid-19, a justiça concedeu a ele o direito da prisão domiciliar, retornando para o presídio em agosto de 2021, mas apenas até o mês seguinte, quando ganhou o direito à prisão domiciliar novamente.


Nessa modalidade, o indiciado ou acusado deve ficar confinado em sua residência, deixando-a apenas com autorização judicial, em situações de necessidade do acusado e seus dependentes ou como algum tipo de benefício cabível.


Entre as regras, estão a já citada proibição de deixar a residência, bem como o consumo de álcool, drogas — nem nada ilícito.


A Lei 112.403/2011, que trouxe alterações para o Código Processual Brasileiro, em seu artigo 317, determina algumas situações para o uso da prisão domiciliar:


I — ser maior de 80 anos;

II — estar debilitado por motivo de doença grave;

III — ser responsável por pessoa menor de 6 (seis) anos ou com deficiência;

IV — gestante;

V — mulher com filho de até 12 (doze) anos incompletos;

VI — homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos incompletos.


Em junho deste ano, João de Deus completa 81 anos.




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