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  • Foto do escritorHellica Miranda

Gaslit: Martha Mitchell, louca ou heroína?

Minissérie estrelada por Julia Roberts, indicada ao Globo de Ouro, revisita o escândalo de Watergate a partir da história de Martha Mitchell.


Créditos de imagem: Lionsgate+ (Reprodução)

O caso Watergate


17 de junho de 1972. Cinco homens invadem a sede do Comitê Nacional Democrata, no Complexo Watergate. Seu objetivo: fotografar documentos e instalar escutas no escritório do Partido Democrata, que lançava como candidato à presidência o senador George McGovern em oposição ao atual presidente, Richard Nixon. Todos os cinco homens — James McCord, Virgilio Gonzalez, Frank Sturgis, Eugenio Martinez e Bernard Barker — são presos.


Os presos pelo caso Watergate | Créditos de imagem: FBI

Coordenando a operação, através de walkie-talkies usados de um prédio a poucos metros, dois ex-membros da CIA e do FBI: G. Gordon Liddy e E. Edward Hunt.


G. Gordon Liddy, considerado e retratado como o “cabeça” da operação | Créditos de imagem: Fred R. Conrad/The New York Times

No dia seguinte, apenas uma pequena notícia sobre o caso, no The Washington Post, atrai os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein para uma investigação maior. Sem muita demora, os dois descobrem que um dos homens presos recebe dinheiro diretamente do comitê de reeleição de Nixon.


Mais tarde, seguindo dicas anônimas, os dois rastreiam um cheque de 25 mil dólares para a conta de um dos invasores, também direto do fundo de campanha. O denunciante é o agente do FBI Mark Felt, que recebe a alcunha de “Garganta Profunda” para ter sua identidade preservada.


Enquanto os outros jornais deixam o caso relativamente de lado, o Post insiste em suas investigações, ao passo que o processo eleitoral corre como o esperado — e Nixon é, inclusive, reeleito.


Enquanto a história cresce na mídia, Richard Nixon mantém uma posição distante e cética sobre o assunto. Para comprovar que o presidente “não sabia de nada”, o promotor James Neal cita uma conversa gravada em 23 de junho entre o presidente e seu chefe de gabinete, na qual Nixon pergunta: “Quem foi o idiota que fez isso?


Em agosto, Nixon declarou publicamente: “Posso dizer categoricamente que... ninguém na equipe da Casa Branca, ninguém neste governo, atualmente empregado, esteve envolvido neste incidente bizarro”. Ele também atribui ao advogado e conselheiro John Dean uma investigação completa do caso, que nunca aconteceu.


Em 15 de setembro de 1972, os cinco invasores, bem como Hunt e Liddy, são indiciados por conspiração, roubo e violação das leis federais de escuta telefônica.


Richard Nixon, o 36º presidente dos Estados Unidos, renunciou à presidência em agosto de 1974, como uma das consequências do escândalo.


Nixon com a família na Casa Branca após sua renúncia | Créditos de imagem: Hulton Archive

Em todas as versões que recontam essa história, algumas figuras essenciais não recebem o devido destaque, e é isso que ‘Gaslit’ se propõe a corrigir. Na série, a protagonista é Martha Mitchell, esposa do procurador-geral John Mitchell, conhecida por suas aparições extravagantes, relação próxima com a mídia e por não ter “papas na língua”.


Martha Mitchell


Créditos de imagem: Bettmann Archive

Nascida em 2 de setembro de 1918, em Pine Bluff, Arkansas, Martha Mitchell tinha dislexia e sonhava em ser atriz, mas acabou trabalhando, por um tempo, como professora, depois de ter namorado “Sonny” Capone, o filho de Al Capone.


Em 1946, Martha se casou pela primeira vez, com o militar Clyde Jennings Jr., com quem teve seu primeiro filho, Clyde Jay. Os dois se divorciaram em 1957, mesmo ano em que Martha conheceu seu futuro marido, John Mitchell, e se casou novamente, dessa vez com o homem que a impressionara por sua “sutileza e intelectualidade”.


À época, John era um advogado bem-sucedido em Manhattan, mas, logo, seu escritório se fundiu ao de Nixon, e a proximidade entre os dois aumentou, levando o casal e a filha pequena, Marty, a se mudar para a capital dos Estados Unidos.


Lá, Martha tornou-se uma figura pública de relevância por sua sinceridade e disponibilidade para a mídia. A relação decadente com o marido aumentava sua tendência a recorrer ao álcool e, frequentemente, ligava tarde da noite para repórteres, sob a influência da bebida e da solidão.


Julia Roberts como Martha Mitchell em ‘Gaslit’ | Créditos de imagem: Lionsgate+ (Reprodução)

A ex-professora tornou-se tão popular que, em novembro de 1970, uma pesquisa da Gallup indicou que 76% dos estadunidenses reconheciam quem ela era, e ela estampou a capa da Time em uma edição sobre as mulheres mais influentes de Washington.


Durante o escândalo de Watergate, Martha estava em viagem com o marido para a Califórnia — retratada na minissérie como um dos “esforços” de John para salvar o casamento e agradar a esposa de “temperamento forte”, que insistia em comentar política e, apesar de cuidar minuciosamente de sua própria figura, detestava viver de aparências.


Sean Penn como John Mitchell e Julia Roberts como Martha | Créditos de imagem: Lionsgate+ (Reprodução)

Para evitar que a esposa opinasse sobre o escândalo, John colocou seu segurança e ex-agente do FBI Steve King para tomar conta de uma Martha em cárcere privado, longe das televisões, jornais e telefones.


Não adiantou. Na semana seguinte, Martha conseguiu um exemplar do Los Angeles Times, em que aparecia James McCord, diretor de segurança do Comitê de Reeleição do Presidente e motorista de sua filha, um dos presos na invasão.


Ligando uma coisa à outra, Martha Mitchell logo percebeu que a narrativa de que o Comitê chefiado por seu marido não tinha relação com o crime era falsa. Ela conseguiu contatar Helen Thomas, uma de suas repórteres favoritas, para dizer que deixaria John até que ele se demitisse do Comitê.


A ligação foi interrompida abruptamente e, depois, Thomas não conseguia mais entrar em contato com Martha. A primeira resposta, de seu segurança, foi de que Martha estaria indisposta. Em seguida, Thomas procurou John, que apenas declarou: “[Martha] fica um pouco chateada com a política, mas ela me ama e eu a amo e é isso que importa”.


A notícia se espalhou e, logo, todos estavam à procura de Martha. Marcia Kramer, repórter policial do New York Daily News, a encontrou em Nova York. Martha tinha várias lesões pelo corpo, causadas em suas tentativas de fugir do cativeiro.


Agredida por vários homens em uma dessas tentativas, Martha acabou se ferindo de modo a precisar de pontos.


Mesmo temendo por sua vida, Martha Mitchell continuou a dar entrevistas e não hesitou em falar sobre a corrupção que envolvia o caso de Watergate. Ainda acreditando que o marido era inocente e “tentando salvar sua reputação”, Martha acabou se tornando uma figura central nas narrativas do escândalo.


Para desacreditá-la perante a imprensa, os assessores de Nixon passaram a falar sobre seus problemas com a bebida, e começaram a construir a história de que ela sofria de transtornos psiquiátricos, estando, inclusive, internada em uma clínica.


Martha Mitchell prestou depoimento sob juramento a respeito do caso, mas, com a ajuda de seu próprio marido, foi humilhada e teve sua palavra descredibilizada. Preparada para os holofotes, Martha recebeu uma sessão sem imprensa, tocada inteiramente por homens e em que foi bombardeada a respeito de sua saúde mental e relação com o álcool.


Pouco mais de um ano após a invasão, John se separou de Martha, indo embora de casa abruptamente e levando consigo a filha do casal. Martha foi abandonada por quase todos. Permaneceu ao seu lado apenas seu filho mais velho, Clyde.


Garrett Graff, autor de ‘Watergate: A New History’, disse que o status de Mitchell como delatora foi ignorada devido à misoginia da época, resultando em sua exclusão da história. Ele disse que Mitchell “alertou a América sobre o que estava prestes a envolver o país” e, mesmo assim, foi ignorada.


Três anos depois do julgamento e da separação — que ainda não havia sido oficializada —, Martha faleceu em decorrência de um câncer.


O "Efeito Martha Mitchell"


Retrato de Martha Mitchell, por Jan De Ruth.

Martha foi ilustrada por décadas como uma figura mentalmente instável, reduzida a uma personagem bêbada, carente e louca.


Eu decidi há muito tempo que vou dizer como me sinto. E se isso não estiver de acordo com a mensagem do presidente, que assim seja.

— Martha, em famosa entrevista reproduzida na série.


Até os dias de hoje, o termo “o efeito Martha Mitchell” é usado para as pessoas que “são chamadas de loucas pelo que falam e depois se descobre que estava dizendo a verdade”.


O documentário “O Efeito Martha Mitchell”, lançado em abril deste ano pela Netflix, se propõe a traçar, em 40 minutos, o perfil dessa personagem central do escândalo de Watergate, que foi excluída da maioria das produções que retratam o caso e esquecida por grande parte da população.


Esse cenário, no entanto, começou a mudar em 2017, quando foi lançado o podcast 'Slow Burn', que recontava a história de Martha e serviu de inspiração para a série.


A série recebe o título de ‘Gaslit’ justamente porque é esse o termo que se refere às vítimas de gaslighting, um tipo de abuso psicológico no qual a vítima é manipulada de modo a não mais confiar em sua memória, percepção e sanidade. Exatamente o que John — não sozinho — fazia com Martha.


Os oito episódios de ‘Gaslit’ estão disponíveis na plataforma da Lionsgate+, substituta da Starzplay.


Julia Roberts e Martha Mitchell


Julia Roberts como Martha Mitchell | Créditos de imagem: Lionsgate+.

Por sua interpretação como Martha Mitchell em 'Gaslit', Julia Roberts foi indicada ao Globo de Ouro 2023 como Melhor Atriz em Série Limitada, Antologia ou Filme para a TV.


A atriz, de 55 anos, já venceu um prêmio Oscar de Melhor Atriz em 2001, por 'Elen Brockovich - Uma Mulher de Talento', um BAFTA pelo mesmo trabalho, três Globos de Ouro (em 1990, por 'Flores de Aço' e em 1991, por 'Uma Linda Mulher' e em 2001, também por 'Elen Brockovich'), entre outros prêmios.


Sobre seu papel em 'Gaslit', declarou, em entrevista à Entertainment Weekly: "Uma das melhores coisas sobre retratar essa pessoa é que havia muito material de origem, muitas imagens de arquivo, muitas fotografias. Eu podia vê-la sendo entrevistada, e a maneira como ela falava, como andava, como se vestia. Havia tanto que eu poderia escavar de todas essas coisas para montar minha interpretação dela".


Eu acho que eles estavam loucamente apaixonados, e acho que eles tinham um relacionamento ótimo e apaixonado. E no final, foi a ruína dela, e acho que sem ele ela deixou de sentir que sabia quem ela era.

— Julia Roberts sobre Martha e John Mitchell.












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