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  • Foto do escritorRafaela Maciel

Maternidade compulsória: no século XXI, mulheres questionam o tal “instinto materno”

Até o século passado, era comum que o maior sonho de uma mulher fosse ser mãe, no entanto, hoje, a maternidade ficou para segundo plano.



Ser mãe costumava ser um típico sonho para a maioria das mulheres do século XX: casar, ter sua própria casa e seus filhos. No entanto, esse desejo foi deixado de lado com as mudanças do século XXI. Isso se deu graças aos novos papéis que as mulheres passaram a assumir na sociedade: de repente, os estudos e as carreiras se tornaram mais importantes — e possíveis — e a maternidade passou a ser uma escolha. Pelo menos, assim deveria ser.


Mesmo com o constante crescimento da mulher no mercado profissional, a sociedade insiste em colocar um tempo máximo para que ela alcance seus objetivos e se torne mãe. Essa pressão desencadeia muita frustração, fazendo com que a mulher tenha filhos contra sua vontade ou antes do tempo desejado — e planejado.


A psicóloga perinatal e doula Natália Aguilar, especialista em luto e Gestalt-terapeuta, explica que, na sociedade, é muito comum existir um modelo pré-estabelecido, em que algumas etapas da vida são colocadas de forma linear: “Você nasce, você cresce, você se torna autônomo, começa a namorar e aí se você namora há muito tempo a sociedade começa a cobrar: você não vai casar? E se você casa ela cobra: “não vai ter filho”? “não vai ter o segundo?”, então existe um modelo mais ou menos pré-estabelecido pela sociedade que vai te dizer isso, que vai dizer que a gente tem que seguir esses moldes”. A psicóloga enfatiza que esses moldes não funcionam na vida real, que cada pessoa molda sua realidade dentro do que está vivendo, desejando e construindo. Ela completa: “Conheço pacientes, conheço amigas psicólogas e amigas que não são psicólogas, que determinado momento da vida, escolheram: “não quero ter filho agora” — Não é que não querem ter filhos, é que não querem ter agora — e que foram muito recriminadas, que foram muitos julgadas”, finaliza.


Essa realidade de julgamento é muito comum e vem crescendo ao longo dos anos. As decisões de uma mulher sempre vêm acompanhadas pelo estigma de julgamento, tanto se são mães "cedo demais" ou se são mães "tarde demais".


A compulsoriedade da maternidade atinge principalmente a população mais carente, pessoas que tiveram pouca instrução e caem no conto de que, para alcançar a felicidade plena, a maternidade é necessária. É o caso de Ana Oliveira Montes, professora de dança do ventre e administradora da página do Facebook “Ventre Feminista”: Ana engravidou de seu filho aos 17 anos, mas já criava 2 sobrinhos.


Não foi uma escolha consciente, não [ser mãe]. Eu hoje eu percebo que não existiu uma consciência nessa escolha, eu desejava muito ter uma família, porque eu vim de uma família disfuncional, de uma família absolutamente adoecida, de um núcleo familiar sem estrutura, e eu tinha essa ideia pré-concebida do que era uma família. Na minha cabeça, é aquela coisa, propaganda de margarina”. Ana engravidou de um amigo, que acabou por não participar e nem contribuir para a criação de seu filho. "No meu tempo, lá pelos anos 90/80, a ideia de liberdade para a mulher vinha através do casamento, e a ideia de amadurecer como mulher vinha através da maternidade. Então você só era mulher de fato se você tivesse casada e com filhos. Se não, você era uma pária, uma não-mulher, que é o que a gente acaba sendo lá para velhice, quando deixa de ter essa habilidade social, que já passou a gravidez, já criamos os filhos. Enfim, eu não sinto que foi uma escolha consciente. Eu acho que, quando a escolha não é consciente, ela não é uma escolha”, finaliza.


A maternidade compulsória é algo que atinge milhares de mulheres, pois ser mãe é quase como uma obrigação que toda mulher deve seguir. A sociedade acaba cobrando da mulher que ela seja uma boa mãe, boa esposa, boa trabalhadora. Com o século XXI, o papel da mulher se ampliou, ela passou a ter empregos melhores — embora com ressalvas —, a ter acesso ao ensino e, principalmente, acesso à informação. De repente, se tornaram claras as possibilidades além da maternidade — e também ficou mais óbvio o julgamento. A mulher passou a conviver com o estigma de: "trabalhe como se não fosse mãe, seja uma mãe como se não tivesse um trabalho". A dupla jornada, bastante discutida, fez com que a mulher pensasse mais sobre a maternidade, preferindo, muitas vezes, deixar a chegada de filhos para depois de conquistar uma carreira mais consolidada.





A divisão de classe social também é um forte indicador do cenário do julgamento. Uma mulher de posição mais elevada, com mais dinheiro, precisa primeiro estudar e estar casada para entrar nos parâmetros da sociedade e, então, ter seu filho — e isso costuma ter um prazo que vai até cerca de 30 anos.


Já uma mulher pobre tem a vida ditada de outra forma. Se torna comum ser mãe cedo e é até visto de forma ruim uma mulher sem filhos. Ana explica um pouco de como foi com ela na gestação de seu filho Ian: “Existiu, assim, aquela cultura de que as meninas engravidam e era assim mesmo. Eu fui a última do meu grupinho de amigas adolescentes a engravidar, pra você ter uma ideia da epidemia de gravidez na adolescência que a gente vivia e ainda vive. Todas as minhas amigas engravidaram com 13, 14, 15 anos. Eu, daquele grupinho pequeno, de 5, 6 amigas, eu fui a última a engravidar e a me casar. Algumas delas tiveram 4, 5 filhos”. A administradora da página Ventre Feminista diz que, na época, existia muita romantização da gravidez. Para aquelas garotas, a liberdade da casa dos pais só viria através do casamento e de filhos. E, como a maioria vivia em famílias disfuncionais, com muitos irmãos e dificuldades, para elas o casamento era uma válvula de escape: “Tinha essas duas nuances, a primeira nuance era essa de na periferia, num lugar mais pobre, era esperado que a jovem com 13, 14 anos, já tivesse arrastando a barriga ou o próprio filho pela mão. Nos outros meios, saindo desse meio muito pobre, quase miserável, que era a minha realidade, você já tinha o julgamento".


Ana conta que as amigas com condições melhores julgaram sua gravidez, e que sofreu muito preconceito da parte das mães: “Eu sentia que minha gravidez era como se eu tivesse uma doença contagiosa. As mães não queriam que elas saíssem comigo, as mães dos amigos também não queriam. Dos amigos homens, porque como eu engravidei de um, na cabeça delas eu poderia engravidar de 10”. A dançarina conta que, ao mesmo tempo que tinha uma “aceitação social” por ser considerado algo “comum” na sua realidade, fora da sua bolha foi muito julgada. E a situação piorou, uma vez que ela não conseguiu ter uma rede de apoio. O pai de seu filho saiu de casa e não ajudou financeiramente com a criação. Por vir de uma família disfuncional, Ana precisou criar seu filho sozinha com mais 2 sobrinhos pequenos. Essa realidade ainda existe — e muito — na vida das mulheres.


Agora, os planos da maternidade estão ficando para depois. Isso tem acontecido gradativamente, principalmente em países mais desenvolvidos. Nas prioridades femininas, estão estudos e crescimento na carreira.


Com a chegada da internet, as informações sobre a maternidade são amplamente divulgadas, mas, mesmo com a modernidade, o papel tradicional da mulher “mãe” continua. É entendido que uma mulher, quando se torna mãe, perde sua própria essência, as pessoas passam a perguntar por seus filhos, passam a criticar a educação que ela dá, os modos, as roupas. A responsabilidade de uma mãe perante a sociedade é muito maior do que a de um pai. Um homem é a pessoa que deve sustentar a família, já a mulher é uma pessoa que deve cuidar, zelar, educar, sustentar, prover, passar, cozinhar e estar lá para seus filhos a todo instante. Ela deixa de ser uma mulher, para ser "apenas" mãe.


A psicóloga Natália explica que essa perda de identidade se configura em um tipo de luto, mas que, infelizmente não é reconhecido: “O luto já é um tema que se a gente pensar que é difícil das pessoas lidarem. Geralmente, a gente não aguenta muito ficar perto de pessoas enlutadas. Eu diria que a gente não tem só falta de paciência, a gente não tem recurso emocional para lidar com isso. É difícil pra gente estar com o outro, na dor do outro. Porque muitas vezes a gente não reconhece essa dor".


A doula explica que o processo de se colocar no lugar de outra pessoa já é complicado quando se trata de morte de alguém, como mãe ou pai, mas que isso se torna mais difícil ainda quando é um luto por algo não palpável, quando se trata de uma perda de um sentimento, de uma identidade: "Um luto por morte a gente tem isso, agora você imagina um luto que não foi ninguém concretamente que se perdeu, foi uma identidade. Como isso vai ser compreendido pelo outro, para ser franqueado, para ser legitimado, para ser aceito? Daí em vez do acolhimento, geralmente essa mulher tem um julgamento e ele vem em forma de “ah, mas você não quis ser mãe?”, “como você está triste, com uma depressão, está falando que sente falta de ser mulher, se você escolheu isso, escolheu ser mãe?”, exemplifica. Natália também explica que a questão não é a escolha pela maternidade: a tristeza que essa mulher sente não é por ter se tornado mãe, é por ter perdido uma identidade e que, quando se perde uma parte sua, essa pessoa tem direito de ficar enlutada, precisa de compreensão e de apoio.


Créditos de imagem: cena do filme 'Como Seria se...?" | Netflix (Reprodução)

Muito se é falado sobre o “instinto materno” que seria algo natural da mulher. A psicóloga explica que esse instinto não existe na realidade e que acaba se tornando mais uma ferramenta para o julgamento. Como a sociedade prega sobre esse instinto natural da mulher para ser maternal, quando esta se torna mãe e tenta se refugiar nesse comportamento natural, percebe que ele não existe, e isso gera culpa. Ela passa a acreditar que o problema está nela, perde a confiança na sua própria maternidade: “Os animais se comportam com suas crias por instinto. E do instinto animal se construiu o termo instinto materno. Esse termo de instinto materno vem dessa construção, porque o animal sabe o que fazer, mesmo não tendo essa racionalidade que a gente tem. Diferente da gente, nós não sabemos, porque nós aprendemos, nós não temos instinto materno. Essa ideia de instinto materno é algo que faz a mulher sentir culpa, ela passa a acreditar que precisa ter esse instinto materno e esse instinto não vem, porque nós não temos isso. Nós somos seres humanos, nós somos seres racionais. E como seres racionais, nós aprendemos na relação”. Natália conclui que se deve parar de cultuar esse instinto, que na realidade, a mãe só vai aprender sobre seu filho, sobre o que fazer em determinada situação, se ela viver aquilo ou buscar ferramentas para entender melhor sobre isso.


A maternidade compulsória, assim como julgamento, sentimento de culpa e uma tristeza não cuidada, podem vir a gerar problemas psicológicos na mulher. A depressão pós-parto infelizmente é comum nas mulheres. A atriz Ísis Valverde, intérprete das icônicas "sereias" Ritinha de 'A Força do Querer' e Sereia de 'O Canto da Sereia', revelou que sofreu da doença. A apresentadora Sabrina Sato contou que sofreu de baby blues quando sua filha nasceu. As duas condições são comuns, mas possuem cuidados e preocupações diferentes.


Ambos são acentuados por períodos de tristeza extrema, choro, ansiedade, vazio. Isso acontece porque, no puerpério, a mulher tem uma queda de hormônios muito grande, que afeta seu emocional. O baby blues costuma ter sintomas um pouco mais leves e são passageiros, duram um período menor de tempo. Já a depressão pós-parto é mais alarmante, com casos extremos que chegam a representar perigoso para a mãe e para a criança. Geralmente, esses sintomas de depressão já estão sendo ocasionados desde a gravidez, mas é no puerpério, quando a mulher tem essa grande queda de hormônios e fica mais fragilizada, que eles vêm à tona.


No período do puerpério a gente tem números significativamente menores do que no período da gestação. O que acontece é que na gestação isso não é cuidado, justamente por esse lugar que a mulher ocupa, este lugar santificado de que a mulher tem que estar plena”, explica a especialista perinatal Natália Aguilar.


A ansiedade, estresse e sentimento de culpa já começam na gravidez e são acentuados no puerpério. Quando uma mulher não está feliz com a maternidade, se sente obrigada a estar naquela situação, mas, as pessoas ao seu redor insistem que este deveria ser um período “feliz”, o sentimento de culpa e ansiedade podem começar a plantar a semente de uma depressão.



A maternidade compulsória muitas vezes acontece dentro de sua própria casa, com o marido pedindo por filhos, pais e sogros insistindo por netos. A mulher se vê em uma situação complexa, seguir suas vontades ou se manter no modelo social adequado. Muitas vezes, a maternidade é desejada, porém depois de outras conquistas. Isso pode ser explicado porque, socialmente, o dever de cuidar dos filhos e da casa pertence à mulher, logo, quem precisaria abrir mão de uma carreira ou de escolhas seria ela.





Outras vezes, a maternidade não é um sonho. Isso se tornou muito comum e passou a ser enxergado nas redes sociais. Muitas mulheres não sentem que precisam ser mães para alcançar a felicidade plena. Na nova geração, é algo bastante observado e muito julgado. Apenas recentemente a mulher conquistou o direito de não precisar da assinatura do cônjuge para realizar uma laqueadura, apesar do procedimento ainda ser bastante burocrático. Além disso, no Brasil é proibido o aborto legal. Ana comenta um pouco sobre o assunto:


Eu sou radicalmente a favor, pra mim é um assunto que não tem que ser discutido [o aborto]. Eu acho que a gente tem que ter direito. Tem e ponto final. Estamos quase em 2023 e isso não era mais pra ser discutido. Legislar sobre o corpo alheio, sobre o útero alheio… A gente não legisla sobre o rim de um homem, se ele vai poder doar ou não, entende? Agora, o meu corpo, ele passa por diversas regras. Eu não posso fazer uma laqueadura — o que é uma contradição —, porque eu tenho um filho só, ao mesmo tempo eu não posso fazer um aborto, se engravidar, tenho que parir”.


Ana defende que a proibição do aborto esta intrinsecamente ligada a países pobres, para uma “manutenção” da pobreza. Que o sistema precisa que a mulher pobre gere filhos que sejam trabalhadores e não contestem a situação em que vivem, pois não possuem condições para isso. Para ela, a proibição do aborto é só uma forma de manter o pobre sempre no mesmo lugar: “Em países mais ricos o aborto não é uma questão, é aprovado há anos. E a gente fica aqui, caminhando, se arrastando, por um direito que é lógico", explica.


Eu não faria, se você me perguntasse, mas eu não milito em causa própria. Eu não quero esse direito pra mim, eu quero essa escolha para todas as mulheres. Eu acho justo que toda mulher tenha o direito de escolher.

Ana Oliveira Montes, sobre o direito ao aborto.


No Brasil, os dados sobre abortos clandestinos não são exatos justamente devido ao seu caráter ilegal, mas estima-se que, a cada 2 dias, uma mulher morre em decorrência de um aborto inseguro, e que as mulheres negras são as que mais sofrem com essa ilegalidade.


Créditos de imagem: Poder360

Segundo os cartórios de Registro Civil do Brasil, nos primeiros 7 meses de 2022, cerca de 100 mil crianças ficaram sem o registro do pai. Mesmo assim, a sociedade ainda considera "pária" uma mulher sem filhos, dificulta o processo de laqueadura e proíbe o aborto no país.


Na cultura


Como Nossos Pais

Sinopse: Rosa é uma mulher que quer ser perfeita em todas suas obrigações: como profissional, mãe, filha, esposa e amante. Quanto mais tenta acertar, mais tem a sensação de estar errando. Filha de intelectuais dos anos 70 e mãe de duas meninas pré-adolescentes, ela se vê pressionada pelas duas gerações que exigem que ela seja engajada, moderna e onipresente, uma supermulher sem falhas nem vontades próprias. Rosa vê-se submergindo em culpa e fracassos, até que em um almoço de domingo, recebe uma notícia bombástica de sua mãe. A partir desse episódio, Rosa inicia uma redescoberta de si mesma.

Onde assistir: Netflix





Mar de Dentro

Sinopse: Manuela (Mônica Iozzi) é uma publicitária de sucesso que se vê diante de uma gravidez não planejada. Por pressão do namorado (Rafael Losso), a profissional segue com a gestação e precisa, a partir disso, lidar com a transformação de seu corpo e de seu cotidiano. Ela encara o desafio com seriedade e, apesar de nunca ter sonhado com a maternidade, quando o bebê nasce Manuela se dedica a aprender a ser mãe e cuidar de seu filho – mesmo que não demonstre um apego apaixonado.

Onde assistir: Telecine (Globoplay + Telecine)











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