Como mergulhei em um relacionamento abusivo mesmo me achando imune a essa mazela.
*Alerta de gatilho.
"Você está exagerando". Foi o que ele disse. Exagerando. Ele me dera um empurrão e, sentada, eu me apoiara em um dos braços para não cair de vez. O resultado: arranhões na pele.
"Talvez você deva controlar melhor sua força, você me machucou", eu digo. A resposta? "Você está exagerando". Acreditei.
Mesmo questionando a mim mesma sobre isso, porque algo semelhante já acontecera pelo menos outras cinco vezes, acreditei. Eu estava exagerando. Afinal de contas, ele me amava. Ele mesmo dissera, quando ainda era o cara com quem eu sempre sonhei: inteligente, sensível, equilibrado entre a razão e a paixão, alguém que eu não poderia comparar com qualquer outra pessoa. Afinal de contas, eu o amava.
"Você está me manipulando". Foi o que ele disse. Disse porque, depois de um longo período enfrentando sua indiferença e seu pouco respeito — sinais que eu não ignorava, mas atribuía a "um período difícil" em sua vida —, eu estava novamente chorando em sua frente. Como se eu quisesse. Como se planejasse uma relação baseada em lágrimas de tristeza, desesperança e solidão. Depois disso, como uma criatura mágica, ele sumiu. Mesmo sob meus pedidos de desculpas — pelo quê? — e minhas intensivas intenções de dialogar.
Às vezes, não existe possibilidade de diálogo. Entender isso é extremamente difícil e, quase sempre, só acontece depois que estamos fora da bolha do relacionamento abusivo.
Sim, aquele que te agride fisicamente (ou talvez não), que te diminui como pessoa, te agredindo verbalmente (ou talvez não), ignorando suas vontades, prioridades e necessidades, te enganando sobre si mesma.
Nada disso é pré-requisito para um relacionamento abusivo. Não existe uma cartilha a ser seguida para configurar um relacionamento abusivo. Talvez por isso seja tão difícil reconhecê-lo.
Quando ele vai embora — e ainda coloca a culpa em você —, não é de imediato que recai o reconhecimento sobre o que foi feito com você. Há estágios e estágios, para cada pessoa. Talvez o primeiro seja o luto, que vai durar bastante. Você perdeu alguém que amava, que continua vivo, mas em uma vida que não mais se conecta à sua, pelo menos não por nada que não seja a tristeza e a dor.
"Você me faz mal". Foi o que ele disse antes de ir. Eu o fazia mal. Pensei em todos aqueles meses sob a ótica dele. E acreditei. Eu o fazia mal. Que pessoa horrível eu devia ser, que eu tinha que ser.
Chorei. Por 45 dias. Passei horas pensando sobre como ele estaria. Afinal de contas, eu o fazia mal. Por outro lado, passei pouquíssimo tempo sequer questionando como eu estava. "Triste" era tudo.
Até que as coisas começaram a fazer sentido. 1+1=2, meu relacionamento foi abusivo... esse tipo de coisa.
Parei de chorar por ele. Passei a chorar por mim. Ainda que parte de mim tivesse uma exorbitante vontade de se culpar e sentir falta dele, entendi que isso era parte do todo. E o todo, nesse caso, era um ciclo de abuso que eu vivenciava desde criança.
Aprendi, não sozinha, mas fortemente influenciada pelas ações dos outros, que, apesar de tudo e qualquer coisa, eu não era suficiente. Me faltava algo. Eu não era digna de ser realmente amada, não como outras garotas e mulheres com as quais meu caminho se cruzou.
Meu primeiro interesse amoroso mais sério, ainda na adolescência, anos antes do cara dos empurrões, me tratara como um troféu por um tempo. Depois, como uma propriedade. Se eu era seu troféu, isso já dizia tudo. Ameaçava chorar quando eu me afastava dele por minutos, apenas para conversar com meus amigos. Contava histórias deturpadas sobre mim. Me contava histórias deturpadas sobre os outros. Moldava minha realidade a seu bel-prazer.
O cara dos empurrões sabia disso. Conhecia toda a história. Eu contara. Porque eu confiara. Ele sabia, também, que minha infância tinha sido marcada por um abuso que durara anos. Um abuso sobre o qual me calei fortemente até depois da maioridade, um abuso que moldou parte do meu ser, à base de medo e desconfiança. Um abuso com o qual eu ainda convivia, já que as cicatrizes são eternas.
Isso não importou. Meu corpo, meus movimentos e minhas expressões restringidos pelo abuso o incomodavam. Tudo em mim parecia incomodá-lo. Mas eu o amava. Amava a pessoa que conheci no começo. A pessoa que eu encontrara sem sequer procurar.
Meu corpo reagia a toda a ginástica hormonal desses sentimentos. Ele sabia. Ele se vangloriava disso. Ainda que eu achasse que estava sob controle de minhas ações, não demorou para que eu percebesse que não. Eu estava na palma de suas mãos. E, ainda que ele tenha "pedido consentimento", não era realmente minha decisão. Há muito eu abrira mão de decidir. Eu cedera o controle sobre mim, sobre minhas decisões e sobre meu corpo, porque assim o fizera para sobreviver quando era pequena.
Hoje, ainda não confio em quem eu mais deveria confiar. Na única pessoa em quem eu deveria confiar. Eu mesma. Porque, por mais que eu deseje profundamente que não, eu ainda me culpo. Afinal, eu quis. Eu aceitei. Eu continuei. Eu não aceitei a ajuda que me foi oferecida. Eu mantive meus olhos fechados, não cegos, mas cegados.
Claro que ele não se vê assim. Nunca verá. As pessoas ao seu redor, muito menos. Eu serei a louca. Eu serei a mentirosa. Eu serei o que quer que seja. Que seja.
Por um tempo, eu quis tanto pedir perdão a ele. Há um tempo, sei que devo pedir perdão a mim mesma. Me perdoe. Vou melhorar. Deixarei de achar que o amor que mereço é amor nenhum. Me perdoe.
*Se você ou alguém que você conhece está passando por uma situação parecida. Procure ajuda.
Ligue Central de Atendimento à Mulher (180)
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