Dados desmistificam previsões alarmistas de empregadores e demonstram a importância do avanço da regulamentação no setor.
Em 2 de abril de 2013, no canal do portal de notícias iG, foi publicado um vídeo intitulado "Socialite Regina Manssur fala sobre a PEC das domésticas". O título em si soa estranho para quem se preocupa com direitos trabalhistas: uma socialite falando sobre direitos adquiridos com muita luta pelas organizações das trabalhadoras domésticas? Regina é uma advogada paulista e ex-participante do programa "Mulheres ricas" da TV Bandeirantes. O que ela teria a dizer?
A PEC das Domésticas foi aprovada no mesmo mês e ano de publicação do vídeo de Regina Manssur, ou seja, há 10 anos. Essa emenda constitucional alterou a Constituição Federal de 1988 para estender às trabalhadoras domésticas os mesmos direitos trabalhistas garantidos aos demais trabalhadores há décadas. Para isso, entretanto, foi preciso aprovar, em 2015, a Lei Complementar nº150, que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil e estabeleceu direitos e deveres a empregadores e empregados domésticos. Seria esse, então, o motivo do incômodo de Regina?
No vídeo, a socialite afirma: "Se existe alguma coisa de bom para o empregado, isso o tempo vai demonstrar, mas no momento atual a situação é de verdadeiro desespero, principalmente dos empregados". Nisso, de fato, ela estava correta. Com base em microdados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs) entre 2011 e 2017, foi possível observar as consequências boas da PEC ao empregado.
Alguns dos efeitos mapeados até dois anos depois de sua aprovação (2015) foram o aumento do percentual de empregadas mensalistas com carteira assinada, a diminuição da percentagem de mensalistas sem carteira e um aumento do número de diaristas — a diarização é um processo que vem sendo observado no setor, tema para outro texto, certamente. Desse modo, vale a pena ressaltar que, apesar do pessimismo da socialite no vídeo, as trabalhadoras puderam sentir um efeito positivo após a PEC e a aprovação da Lei nº150/2015.
Além disso, outro ponto positivo verificado após a aprovação da legislação foi a diminuição da jornada das trabalhadoras mensalistas. Tal efeito respingou sobre mensalistas sem carteira, indicando que até mesmo as trabalhadoras que permaneceram na informalidade acabaram se beneficiando. Esse aspecto é central, haja vista o passado sócio-histórico do trabalho doméstico com raízes na escravização de pessoas, principalmente de mulheres negras. Ao reduzir a jornada, nos afastamos cada vez mais daquela ordem de relações de trabalho em que a trabalhadora morava na casa dos empregadores, sendo acionada de forma indiscriminada por eles. Tal dinâmica, inclusive, acabava reforçando uma narrativa que ainda circula, a de que trabalhadoras domésticas são "quase que da família", com base na qual muitas mulheres permanecem sem direitos trabalhistas.
A ex-"Mulher rica" Regina também indica que "da mesma forma que se dá muitos direitos aos empregados, os empregadores vão ficar em situações que eles não vão conseguir segurar". Primeiramente, chama a atenção que, na realidade, trabalhadoras domésticas não conquistaram "muitos direitos" com a PEC, mas sim conseguiram garantir pelo menos alguns dos direitos que já estavam em voga para o restante dos trabalhadores. Além disso, é nítido o pânico moral criado em torno da legislação, como se empregadores fossem demitir mais os seus empregados por causa dela.
Investigações sobre a realidade concreta buscaram verificar se o desemprego de fato assolou a classe após a legislação. Na realidade, dados nos mostram que, na década de 2010, a quantidade de mulheres ocupadas como trabalhadoras domésticas já estava em queda. Entre a aprovação da PEC em 2013 e a Lei nº150/2015, o setor diminuiu em 213 mil trabalhadoras domésticas, o que não pode ser caracterizado como "desemprego em massa". De 2016 a 2017, inclusive, a taxa de desemprego em geral ficou mais alta, mas observou-se um aumento do número absoluto das trabalhadoras no setor. Esse aumento sugere que mais pessoas foram contratadas no setor, mesmo em um cenário de alta no desemprego em geral.
Mais recentemente, no dia 17 de abril de 2023, o canal da TV Senado no YouTube exibiu audiência realizada no âmbito da Comissão de Direitos Humanos para celebração dos dez anos da PEC das Domésticas. Na audiência, foi marcante a fala da deputada federal Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), ao afirmar que: "Não existe ainda totalmente uma consciência no imaginário do empregador doméstico, porque essa questão de ‘Casa Grande e Senzala’ é uma coisa muito forte. E ela não pode se perpetuar".
A fala de Benedita da Silva nos remete aos desafios que ainda enfrentamos, apesar do avanço da legislação, como as denúncias de trabalhadoras doméstica em situação análoga à escravidão.
Em 2022, a Folha de São Paulo lançou o podcast "A Mulher da Casa Abandonada", do jornalista Chico Felitti. Nele, Felitti investigou a história de uma mulher paulistana de família tradicional e burguesa — qualquer semelhança com Regina Manssur não é mera coincidência —, que se mudou para os EUA, levou consigo a empregada doméstica e a manteve em situação de vulnerabilidade e violência por anos. A mulher, que esteve em investigação nos EUA, estaria foragida no Brasil.
Fica, então, evidente que o caminho das pedras que levará as trabalhadoras domésticas aos direitos trabalhistas plenos não está totalmente pavimentado. Pelo contrário, quanto mais caminhamos, mais buracos encontramos. O que nos resta, portanto, é seguirmos lutando na linha de frente das organizações de trabalhadoras domésticas, na academia, na mídia, nas casas legislativas e em nossas experiências individuais cotidianas. A luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas é a luta pelo direito de todas as mulheres trabalhadoras.
Texto necessário e que gera boas reflexões! Amei a leitura.
Os dados apresentados foram mapeados a partir da técnica de revisão bibliográfica do artigo "'PEC das Domésticas': holofotes e bastidores", de Alexandre Barbosa Fraga e Thays Almeida Monticelli, publicado na Revista Estudos Feministas. O artigo pode ser acessado em: <https://www.scielo.br/j/ref/a/wxFYxzJ9mpW6HrqHLgTbHds/abstract/?lang=pt>. Espero que gostem do texto! 😊