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  • Foto do escritorHellica Miranda

“The Dropout” e a jovem enforcada pela própria rede de mentiras

Minissérie da Star+ conta história real da jovem que enganou o mundo com fraude bilionária na indústria biotecnológica.


Créditos de imagem: Star+ (Divulgação)

A inventora


Elizabeth Holmes.


Com nome de atriz, a jovem, nascida em fevereiro de 1984 na capital dos Estados Unidos, acabou executando exatamente essa função em sua vida. Desde os 19 anos, a obstinada e ambiciosa herdeira de uma significativa linhagem de inventores passou a interpretar o papel de inventora e CEO de uma companhia aparentemente inovadora. Aos 30, estava no topo: era um dos maiores e mais promissores nomes do Vale do Silício, comparada a Steve Jobs, capa da Forbes e dona de uma empresa bilionária.


Ainda criança, Elizabeth, filha mais velha de Christian Rasmus Holmes IV, antigo vice-presidente da Enron, empresa de energia que foi à falência por fraude contábil, e da funcionária de comissão do Congresso, Noel Anne, já dizia claramente o que queria fazer quando crescesse: inventar um produto e se tornar bilionária.


Imagem da carta da pequena Elizabeth para o pai, em que ela falava sobre seu desejo de criar algo revolucionário.

Essa parecia ser a força motriz de Elizabeth. Inventar um produto e se tornar bilionária.


Inteligente acima da média, a jovem foi aceita na Universidade de Stanford, onde se formaria em Engenharia Química. Já no ensino médio, Elizabeth tinha conexões com Stanford: cursou um programa de verão de estudos de mandarim, idioma no qual gostava de trabalhar com programação.


No final de seu primeiro ano como universitária, integrou um programa de pesquisa de SARS-CoV-1 (Coronavírus relacionado à síndrome respiratória aguda grave, do mesmo grupo do SARS-CoV-2, causador da pandemia de Covid-19)

no Genome Institute of Singapore, em Cingapura. 


Foi lá que Elizabeth desenvolveu seu primeiro produto: uma espécie de adesivo que, preso ao corpo, administraria medicamentos de acordo com as necessidades do paciente. Em The Dropout, é mostrado que a ideia do produto foi rejeitada por especialistas.


Nos meses seguintes, inconformada com a rejeição de sua ideia, Elizabeth trabalhou incansavelmente em esboços de novos possíveis produtos, chegando a um que parecia perfeito: com um aparelho portátil, ela democratizaria o acesso à saúde possibilitando que centenas de exames de sangue fossem realizados com apenas poucas gotas, extraídas sem agulhas em um processo semelhante ao de medição de glicemia capilar.


Com a ideia, Elizabeth convenceu os pais a doarem os fundos destinados à sua educação em Stanford para o desenvolvimento do produto, e abandonou a faculdade, fundando sua própria empresa, chamada inicialmente de Real-Time Cures e, depois, de Theranos (junção de “terapia” e “diagnóstico”, em inglês), quando tinha apenas 19 anos, mesmo depois de ouvir de diversos especialistas que a ideia do produto não vingaria.


Começando sua companhia em um escritório decadente na região de Palo Alto, Elizabeth precisou de “jogo de cintura” para colocar o projeto em andamento. 


Em menos de um ano, contudo, Holmes já havia levantado 6 milhões de dólares em fundos para a empresa e, no final de 2010, o valor ultrapassava os 92 milhões. Antes dos 30 anos, Elizabeth ficou conhecida por formar o mais ilustre conselho da história corporativa dos Estados Unidos, do qual fazia parte, por exemplo, o ex-secretário de Estado George Schultz.


A série, protagonizada por Amanda Seyfried no papel de Elizabeth, mostra que, mesmo após convencer alguns investidores e reunir uma equipe de cientistas, Elizabeth tinha problemas no desenvolvimento de um protótipo que funcionasse. Sem conhecimento científico suficiente para ajudar nessa parte do projeto, a fundadora da Theranos atuava como um rosto da empresa, se safando de situações absurdas com “pequenas mentiras” e omissões costuradas em respostas abstratas, sempre fugindo — e fingindo — para avançar um pouco mais na corrida por seus bilhões de dólares.



Ao seu lado na empreitada — embora às escondidas —, estava seu namorado, que Elizabeth não assumiu publicamente mesmo chegando a viver na mesma casa, Sunny Balwani, empresário 19 anos mais velho, que fornecia conselhos corporativos e era também sócio de sua companhia.


Durante os episódios de The Dropout, Elizabeth inventa desculpas até mesmo para o namorado para justificar suas ações, e enfrenta o questionamento daqueles ao seu redor. Mesmo assim, a empresa cresce no mercado, enquanto Holmes mergulha na construção de uma persona que se veste como o ídolo Steve Jobs e até mesmo fala com uma voz diferente, em um tom que não é o seu natural: a voz mais aguda torna-se mais grave, o que é apresentado por alguns especialistas como um gesto de manipulação comum em alguns casos de sociopatia.


Chega a ser desesperador assistir o despreparo de Elizabeth e sua falta de competência para lidar com os negócios e com a ciência ao passo que seu projeto toma dimensões cada vez maiores. A cada fala, a cada gesto, a fundadora da Theranos se enrola cada vez mais em sua própria rede — ou bola de neve — de mentiras. 


"Fake it until you make it"


Fingir até conseguir”.


Um dos grandes clichês das empresas de tecnologia vem do jargão em inglês “fake until you make it”, que resume todo o processo de interpretar um papel de visionário com uma ideia pouco embasada, conquistar investidores e “súditos”, angariar os fundos necessários para pesquisas e, finalmente, desenvolver o que não existia no momento da “venda”. Quase uma cornucópia.


Era essa a filosofia que Elizabeth seguia — talvez até inconscientemente. Havia uma ideia, ainda inexecutável, mas havia. Para colocá-la em prática, todavia, Holmes precisava de credibilidade e investimento — cada vez mais. Mas, para conquistar credibilidade e investimento, sua ideia precisava se mostrar viável, executável. O que não era a realidade.


Você teve uma boa ideia. Só que você não está pronta ainda.

Don Lucas, personagem inspirado no investidor Donald Leo Lucas.


Donald Leo Lucas (esq.) e Don Lucas, interpretado pelo ator Michael Ironside.


— Qual era seu sonho quando era criança? — Acho que eu não tinha nenhum. — Isso parece ótimo. — O quê? — Não saber o que quer fazer com a sua vida. — Não é ótimo, é assustador. — Por que estar assustada? Você pode fazer o que quiser. Porque não importa realmente, né? Nada que você fizer vai importar, porque você não liga de verdade. Quer dizer, você não tem nenhuma ambição, não quer fazer nada importante. Você é só uma pessoa.

— Elizabeth, em The Dropout, em conversa com funcionária da assistência técnica da Apple.


Na série, é também mostrado o momento em que, a partir de uma reunião do conselho da Theranos, formado inteiramente por homens, Elizabeth é deposta do cargo de CEO. 


Isso aqui está uma bagunça. Você precisa entender do que estamos falando aqui… você precisa de supervisão de adultos.

— Don Lucas, personagem inspirado no investidor Donald Leo Lucas, em The Dropout.


Eu sou só uma garota… que tinha um sonho de mudar o mundo. E eu só não percebi quão difícil isso seria.

— Elizabeth Holmes, personagem inspirada na fundadora da Theranos, em The Dropout.


Na ocasião, Elizabeth chora e, em mais uma de suas ações “fingir até conseguir”, pede desculpas ao conselho e declara que, justamente por precisar de ajuda, contatou um antigo amigo (Sunny), que lhe aconselhou a desistir das indústrias farmacêuticas e procurar o apoio do varejo. E, além disso, ofereceu um investimento de 20 milhões de dólares e sua entrada na companhia como vice-presidente, contanto que Elizabeth fosse mantida na presidência.


A ideia é aprovada e, só então, Elizabeth procura Sunny, com quem o relacionamento está instável, e propõe a parceria.


É, na série, o momento de virada da jovem, que adota um novo estilo — as golas altas pretas de Steve Jobs, combinadas ao marcante batom vermelho —, bem como uma nova postura em relação aos negócios. 


Elizabeth (Amanda Seyfried) e Sunny (Naveen Andrews) em The Dropout. | Créditos de imagem: Star+ (Reprodução)


O castelo de cartas de Elizabeth


A chegada de Sunny à Theranos é, no mínimo, tumultuada. Ele tem políticas mais duras, aumenta o número de guardas no saguão e restringe ainda mais  o espaço dos funcionários, tendo uma postura imperativa que “mata a alegria” dos trabalhadores de acordo com um dos personagens centrais da história, Ian Gibbons, inspirado no bioquímico britânico de mesmo nome que trabalhou por 30 anos na indústria diagnóstica antes de entrar na Theranos.


Eu acreditei nela. Eu olhei nos olhos dela e disse a ela que podia ver o futuro.

— Ian Gibbons, em The Dropout.


Ian Gibbons real, e o ator Stephen Fry como Gibbons em The Dropout.

O verdadeiro Ian Gibbons — assim como na série — suicidou-se por overdose de medicamentos às vésperas de seu depoimento em um processo envolvendo a Theranos, no qual o cientista, se expusesse as mentiras da empresa, poderia ser processado por quebrar o acordo de confidencialidade com a companhia e, por outro lado, se mentisse em juízo, poderia ser acusado e condenado por perjúrio. 


A morte de Ian foi um dos catalisadores do movimento que culminou na publicação do primeiro artigo expondo as fraudes da companhia, escrito pelo jornalista John Carreyrou com ajuda dos depoimentos prestados por Tyler Shultz — ex-estagiário da Theranos, neto de George Shultz —, Erika Cheung — também ex-estagiária —, o médico Richard Fuisz e a professora de medicina Phyllis Gardner, bem como antigos funcionários da Theranos, médicos, pacientes prejudicados pelos exames ineficazes e outros especialistas da área de saúde e biotecnologia.


Dylan Minnette como Tyler Shultz e Camrym Mi-Young Kim como Erika Cheung em The Dropout (esq.) e os dois na vida real.

Amanda Seyfried como Elizabeth Holmes


Elizabeth (esq.) e Amanda Seyfried como Elizabeth em The Dropout.

Por The Dropout, Amanda foi indicada a seis prêmios, incluindo o Emmy de Melhor Atriz em Série Limitada — que venceu na última segunda-feira, concorrendo contra Toni Collette (de ‘A Escada’), Julia Garner (de ‘Inventando Anna’), Lily James (de ‘Pam & Tommy), Sarah Paulson (de ‘American Crime Story: Impeachment’) e Margaret Qualley (de ‘Maid’) —, Antologia ou Filme para TV e como Melhor Série Limitada, Antologia ou Filme para TV (já que é também produtora da série). 


Amanda realiza, possivelmente, um de seus melhores trabalhos artísticos. Ela incorpora Holmes com precisão, representando seus trejeitos — como raramente piscar, costume descrito no livro de 2018 ‘Bad Blood: Fraude Bilionária no Vale do Silício’, de John Carreyrou, o jornalista que expôs toda a história, e a mudança proposital de tom de voz. 


Sua atuação rende os melhores momentos da produção, e as cenas com Naveen Andrews, intérprete de Sunny Balwani, dão “um quê a mais” na compreensão da mente de Elizabeth Holmes. A dinâmica dos dois condiz com as descrição do livro de John Carreyrou, de que Elizabeth era forte e diretamente influenciada pelo namorado, mas que também exercia seu poder sobre ele.


(…) como Holmes conseguiu racionalizar o fato de estar apostando com as vidas das pessoas? Uma das explicações possíveis é que ela tornou-se refém da influência nefasta de Balwani. Seguindo essa linha de pensamento, Balwani era o Svengali de Holmes e a converteu — a inocente e ingênua garotinha com grandes sonhos — na precoce jovem fundadora de uma startup pela qual o Vale ansiava, sendo que ele já estava velho demais, era homem demais e indiano demais para fazê-lo por si próprio. Não há dúvidas de que Balwani foi uma péssima influência. Mas colocar toda a culpa em seus ombros não seria apenas conveniente demais, mas inadequado. Os funcionários que observaram a relação dos dois de perto descrevem uma parceria na qual Holmes, mesmo tendo 20 anos a menos, tinha sempre a última palavra.

— Bad Blood: Fraude Bilionária no Vale do Silício, de John Carreyrou. 


Amanda nunca chegou a conhecer Elizabeth e, em entrevista a Stephen Colbert no Late Show, disse que gostaria de fazer algumas perguntas à ex-bilionária: “Acho que gostaria de saber se ela estava consciente de quando as coisas mudaram para ela quando ela fez… Se há uma escolha específica que ela fez que meio que a levou para o abismo que é onde Theranos vive agora. Eu gostaria de perguntar isso a ela. E eu também gostaria de saber sobre o passarinho que ela fala em suas mensagens de texto com Sunny. Quero saber se ela teve um filhote de passarinho ou se foi metafórico”.


O pássaro foi assunto de uma das muitas mensagens do casal. De acordo com o Daily Mail, certa vez, Holmes enviou uma mensagem para Sunny perguntando como estava o “bebê passarinho” e se um amigo poderia alimentá-lo. Como Seyfried apontou, o significado do texto pode ter sido, na realidade, algum tipo de código, mas isso é só especulação.


A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício


Créditos de imagem: HBO (Divulgação)

Lançado em 2019 pela HBO e disponível no catálogo de streaming da HBO Max, o documentário ‘A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício’ reúne ex-funcionários da Theranos — como Erika Cheung e Tyler Shultz, que conta ter gastado entre 400 e 500 mil dólares em despesas com advogados graças aos processos movidos pela empresa após sua denúncia ao jornalista John Carreyrou —, jornalistas, investidores e especialistas para uma análise mais profunda sobre a fraude da Theranos.


Na produção, de pouco menos de 2 horas, são exibidas entrevistas de Elizabeth, demonstrando seu  poder de persuasão e a oratória quase impecável, bem como os marcos importantes alcançados: as capas de revistas que a colocaram ao lado de inventores revolucionários, os eventos e premiações que a integraram a celebridades, políticos, e membros importantes e célebres da sociedade estadunidense. 


Elizabeth estampou as capas das mais célebres revistas estadunidenses.

Não sinto que foi um golpe friamente planejado. Parece que começou com algo pequeno, com uma mentira, e virou uma bola de neve para essa situação realmente louca”, atesta Erika Cheung no documentário.


Em ‘A Inventora’, é possível ter um olhar mais crítico e analítico sobre o impacto das mentiras e da credulidade cega sobre a queda bilionária da Theranos e como uma estrela em ascensão se transformou em uma das pessoas mais desprezadas da indústria estadunidense.


Elizabeth Holmes ainda enfrenta um processo com acusações de fraude e conspiração. As polêmicas também continuam, envolvendo seu relacionamento com Billy Evans, magnata do ramo da hospitalidade com quem ela teve um filho. A gravidez, inclusive, foi a responsável por arrastar o julgamento, com um processo que começou em 2018 e teve de ser interrompido por conta da pandemia da Covid-19.


Em 2021, Elizabeth à entrada para o tribunal. | Créditos de imagem: Nick Otto/ AFP

Caso seja condenada à pena máxima, Holmes pode ficar até 20 anos na prisão, já tendo sido considerada culpada de quatro acusações de fraude por tentativa de enganar os investidores da Theranos com a promessa da inovadora tecnologia que nunca funcionou. Ela permanece em liberdade enquanto aguarda a sentença, que deve sair ainda este mês e pode envolver uma multa de até 250 mil dólares.


Um sociopata é geralmente descrito como alguém com pouca ou nenhuma consciência. Deixarei que os psicólogos decidam se Holmes se encaixa nesse perfil clínico, mas não há dúvidas de que seu padrão moral era totalmente distorcido. Estou bem seguro de que ela não teve a intenção, logo de início, de defraudar os investidores e colocar os pacientes em perigo quando desistiu de Stanford, 15 anos atrás. Pelo que consta, ela teve uma visão na qual acreditava genuinamente e atirou-se em prol de sua realização. No entanto, em sua busca incessante para tornar-se a segunda versão de Steve Jobs em meio à corrida do ouro do boom do ‘unicórnio’, houve um momento em que ela parou de dar ouvidos a conselhos sensatos e começou a trapacear. Sua ambição era voraz e não aceitava interferências. Caso houvesse danos colaterais em seu caminho para alcançar riqueza e fama, que seja, faz parte.

— Bad Blood: Fraude Bilionária no Vale do Silício, de John Carreyrou.


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